A dificuldade de definir esquerda e direita é produto do avanço das ideias progressistas
Por Ferreira Gullar para a Folha
O que é, hoje, ser de esquerda? Há algumas décadas, era ser contra o imperialismo americano, a favor da reforma agrária e de um governo socialista; para alguns, substituir a "ditadura" da burguesia pela ditadura do proletariado. Hoje, já não se fala em imperialismo americano e, com raras exceções, todo mundo é a favor da reforma agrária, que se tornou, como é no Brasil, programa de governo. O que é, então, ser de esquerda ou de direita hoje?
Acreditar em Deus já não é ser de direita, uma vez que há até padres que amaldiçoam o capitalismo e outros que abençoam o socialismo. Opor-se aos Estados Unidos é ser de esquerda, então o aiatolá Khomeini e o presidente Ahmadinejad, dirigentes de um regime teocrático, seriam de esquerda. Bush era de direita, claro, mas é possível afirmar que Obama, presidente da maior potência capitalista do planeta, é de esquerda?
E o presidente da Venezuela? Não há dúvida de que ele apoia o regime comunista cubano e que critica a três por dois os Estados Unidos, mas é para eles que vende a maior parte do petróleo que seu país produz. É verdade também que tem estatizado empresas e ameaçado os capitalistas venezuelanos. No entanto, no plano internacional, alguns de seus aliados mais importantes são aqueles mesmos aiatolás, devotos fanáticos tanto de Alá quanto do capital.
De qualquer modo, à falta de melhor qualificação, pode-se dizer que Hugo Chávez é de esquerda, mas uma esquerda que, em vez de pregar a luta de classes entre a burguesia e o proletariado, explora as contradições entre os ricos e os pobres. Deve-se concluir que os programas assistencialistas, tipo o Bolsa Família, são revolucionários?
Esse deslocamento do conflito entre classes sociais é, aliás, um traço que define certa discutível esquerda latino-americana. O processo histórico mostra que, se a classe operária foi, no passado, a esperança dos revolucionários de esquerda para derrotar o capitalismo, hoje, serve como poder de barganha da elite sindical que, graças a ela, conquistou posições importantes no aparelho de Estado, tornando-se uma espécie de nova classe -os "neopelegos".
Esse fenômeno, no Brasil, alcançou sua plenitude com a ascensão do PT ao poder central do país, sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva -fenômeno que deve estar sendo estudado pelos cientistas políticos, enquanto eu me limito a registrá-lo, a partir do que observo no dia a dia.
A referida mudança mostrou-se claramente quando Lula, derrotado em três eleições seguidas para presidente da República, afirmou que, se fosse para perder de novo, não se candidataria mais. Até ali, ele encarnara o papel de líder operário radical, cujo único "programa" era acabar com a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. Como o faria, nunca disse.
Aliás, é característica desse tipo de esquerda fazer crer ao povo que, como por milagre, sua simples chegada ao poder porá fim às desigualdades sociais, uma vez que elas seriam o resultado da deliberada exclusão com que os ricos (malvados, por natureza) castigam os pobres. Claro que eles sabem muito bem que elas são consequências do processo histórico, que encontram no capitalismo sua expressão atual. O desmonte do modo de produção capitalista na URSS, após a revolução de 1917, resultou em duas décadas de estagnação econômica e fome. É que, nesse terreno, não há milagres.
Lula, que jamais pretendeu fazer revolução, decidiu pôr a bola no chão e dizer a que veio. Aderiu à política econômica de FHC, que dera certo, e prometeu respeitar as regras do jogo capitalista; assim, mesmo sem nenhum projeto para o país, ganhou as eleições.
Pouca gente acreditou que a mudança de Lula fosse para valer, mesmo quando ele escolheu para vice um empresário. Com o PT, surgira o novo pelego, que, disfarçado de revolucionário, igualou seu poder ao do empresariado e, finalmente, chegou à Presidência da República.
Mas o mito do operário redentor se manteve. Assim, Fernando Henrique Cardoso, ao passar a faixa presidencial a Lula, afirmou que se sentia orgulhoso de fazê-lo a um representante da classe operária. Mera gentileza. De fato, passava-a a um membro da elite sindical, que, para tranquilidade geral do empresariado, entretém os pobres com benesses, à custa do aumento de impostos, que todos nós pagamos.
De qualquer modo, entendo que a dificuldade de definir, hoje, esquerda e direita é consequência do avanço das ideias progressistas. Conhece alguém que se oponha à construção de uma sociedade justa? Eu não conheço. Difícil mesmo é chegar lá.
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Por Ferreira Gullar para a Folha
O que é, hoje, ser de esquerda? Há algumas décadas, era ser contra o imperialismo americano, a favor da reforma agrária e de um governo socialista; para alguns, substituir a "ditadura" da burguesia pela ditadura do proletariado. Hoje, já não se fala em imperialismo americano e, com raras exceções, todo mundo é a favor da reforma agrária, que se tornou, como é no Brasil, programa de governo. O que é, então, ser de esquerda ou de direita hoje?
Acreditar em Deus já não é ser de direita, uma vez que há até padres que amaldiçoam o capitalismo e outros que abençoam o socialismo. Opor-se aos Estados Unidos é ser de esquerda, então o aiatolá Khomeini e o presidente Ahmadinejad, dirigentes de um regime teocrático, seriam de esquerda. Bush era de direita, claro, mas é possível afirmar que Obama, presidente da maior potência capitalista do planeta, é de esquerda?
E o presidente da Venezuela? Não há dúvida de que ele apoia o regime comunista cubano e que critica a três por dois os Estados Unidos, mas é para eles que vende a maior parte do petróleo que seu país produz. É verdade também que tem estatizado empresas e ameaçado os capitalistas venezuelanos. No entanto, no plano internacional, alguns de seus aliados mais importantes são aqueles mesmos aiatolás, devotos fanáticos tanto de Alá quanto do capital.
De qualquer modo, à falta de melhor qualificação, pode-se dizer que Hugo Chávez é de esquerda, mas uma esquerda que, em vez de pregar a luta de classes entre a burguesia e o proletariado, explora as contradições entre os ricos e os pobres. Deve-se concluir que os programas assistencialistas, tipo o Bolsa Família, são revolucionários?
Esse deslocamento do conflito entre classes sociais é, aliás, um traço que define certa discutível esquerda latino-americana. O processo histórico mostra que, se a classe operária foi, no passado, a esperança dos revolucionários de esquerda para derrotar o capitalismo, hoje, serve como poder de barganha da elite sindical que, graças a ela, conquistou posições importantes no aparelho de Estado, tornando-se uma espécie de nova classe -os "neopelegos".
Esse fenômeno, no Brasil, alcançou sua plenitude com a ascensão do PT ao poder central do país, sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva -fenômeno que deve estar sendo estudado pelos cientistas políticos, enquanto eu me limito a registrá-lo, a partir do que observo no dia a dia.
A referida mudança mostrou-se claramente quando Lula, derrotado em três eleições seguidas para presidente da República, afirmou que, se fosse para perder de novo, não se candidataria mais. Até ali, ele encarnara o papel de líder operário radical, cujo único "programa" era acabar com a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. Como o faria, nunca disse.
Aliás, é característica desse tipo de esquerda fazer crer ao povo que, como por milagre, sua simples chegada ao poder porá fim às desigualdades sociais, uma vez que elas seriam o resultado da deliberada exclusão com que os ricos (malvados, por natureza) castigam os pobres. Claro que eles sabem muito bem que elas são consequências do processo histórico, que encontram no capitalismo sua expressão atual. O desmonte do modo de produção capitalista na URSS, após a revolução de 1917, resultou em duas décadas de estagnação econômica e fome. É que, nesse terreno, não há milagres.
Lula, que jamais pretendeu fazer revolução, decidiu pôr a bola no chão e dizer a que veio. Aderiu à política econômica de FHC, que dera certo, e prometeu respeitar as regras do jogo capitalista; assim, mesmo sem nenhum projeto para o país, ganhou as eleições.
Pouca gente acreditou que a mudança de Lula fosse para valer, mesmo quando ele escolheu para vice um empresário. Com o PT, surgira o novo pelego, que, disfarçado de revolucionário, igualou seu poder ao do empresariado e, finalmente, chegou à Presidência da República.
Mas o mito do operário redentor se manteve. Assim, Fernando Henrique Cardoso, ao passar a faixa presidencial a Lula, afirmou que se sentia orgulhoso de fazê-lo a um representante da classe operária. Mera gentileza. De fato, passava-a a um membro da elite sindical, que, para tranquilidade geral do empresariado, entretém os pobres com benesses, à custa do aumento de impostos, que todos nós pagamos.
De qualquer modo, entendo que a dificuldade de definir, hoje, esquerda e direita é consequência do avanço das ideias progressistas. Conhece alguém que se oponha à construção de uma sociedade justa? Eu não conheço. Difícil mesmo é chegar lá.
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