sexta-feira, 8 de maio de 2009

Textos de Formação: A Fala do Cara e o Cara da Fala

Lula esteve ontem no Maranhão, que sofre com as cheias. É um destino infausto o do estado. Quando não são os Sarneys, são as chuvas. Nas últimas décadas, naquela parte do país, em vez de os políticos corrigirem os desastres da natureza, é a natureza que, volta e meia, extrema os desastres dos políticos. “O Cara” concedeu depois uma entrevista coletiva na presença da governadora Roseana Sarney (PMDB) — aquela que perdeu a eleição, mas foi feita governadora biônica pelo TSE, presidido pelo inefável Ayres Britto.

Sim, o Tribunal Superior Eleitoral, com saudades da ditadura militar, reintroduziu no Brasil o mandato biônico para governador de Estado sob o pretexto de moralizar as eleições. Tente explicar o procedimento a algum estrangeiro habituado à democracia. Ele vai preferir as nossas jabuticabas às nossas instituições. Não há país democrático no mundo que dê posse a derrotados. Mas só a gente tem jabuticaba, pororoca e Ayres Britto. Adiante.

Na coletiva, “O Cara” deve ter sido indagado sobre a oposição ferrenha que o magriço petismo local faz à dinastia Sarney. E então ele afirmou que, no governo, muitas vezes, teve de contrariar o PT para fazer a coisa certa. E deu um exemplo concreto: seu partido se opunha às medidas econômicas tomadas no começo do governo, que depois se mostraram acertadas etc e tal, preparando o país para enfrentar a crise. É, em parte é verdade mesmo. Lula se elegeu com o programa do PT e depois governou com o modelo herdado de FHC, o que ele admite agora, ainda que de modo oblíquo, naquele ritmo da glossolalia de palanque. Não foi só na economia, não é? O software, digamos, econômico que roda no governo Lula nada tem da pregação histórica dos petistas, que ele mesmo já definiu como “bravata”. Então poderíamos parar por aqui, juntando-nos à esquerda doidivanas, que lamenta que o governo petista não seja, então, VERDADEIRAMENTE PETISTA. Mas temos de avançar porque os esquerdistas, como de hábito, estão errados.

Nada mais petista do que a trapaça política agora confessada por Lula, embora ele a tenha ornado com os brocados do pragmatismo que engana trouxas. O PT afetava uma agenda esquerdizante em economia porque o discurso servia à mobilização de seus tontons-maCUTs, mas nunca, de fato, passou pela cabeça do partido reestatizar empresas privatizadas, por exemplo. Ou intervir de maneira brusca no mercado. Na área econômica, o propósito sempre foi outro: ampliar as medidas compensatórias aplicadas pelo governo anterior e seguir as regras da economia de mercado. Aliados insatisfeitos e adversários deveriam ser enfrentados na arena política. A conjuntura internacional ajudou enormemente com ao menos quatro anos de crescimento robusto — ainda que inferior ao de outros emergentes. Isso contribuiu para conferir ao Apedueta ares de grande administrador e, segundo alguns, até mesmo de visionário. A história é conhecida e aborrecida. Não precisa ser repisada aqui.

Assim, aqueles esquerdistas que esperavam o partido socialista deram com os burros n’água. E alguns choram até hoje — na imprensa e na academia, então, o que ainda há de viúvas do petismo dos anos 80... Eis a prova de que a sabedoria nem sempre chega com a idade. Mas cuidado para que, ao se acusar este engano, não se cometa um outro, ainda mais grave — e este pode ser fatal para os adversários do petismo. Não! O fato de o partido ter-se mostrado “mercadista” em economia — parcialmente ao menos (já explico a razão da ressalva) — não quer dizer que tenha se convertido à mais estrita lógica democrática. E eis o busílis. Não se converteu, não. Continua a alimentar uma visão autoritária de sociedade.

A tentação dirigista, centralizadora, que busca substituir a sociedade por tentáculos do partido, ainda é a mesma. E o partido, é bom que se diga, vem realizando aos poucos o seu intento. Os petistas foram bem-sucedidos, até aqui, em plasmar uma visão de mundo que se espalha de modo horizontal e que também atravessa verticalmente a sociedade brasileira. Se me impusessem definir em uma linha essa tal visão de mundo, eu diria que ela consiste em substituir o mérito pela justiça. E muitos indagarão de imediato: “Mas o que há de errado nisso? Então não é bom ser justo?” A resposta conceitual óbvia é esta: “não em lugar do mérito”. A resposta no que concerne à política aplicada precisa apontar a forma como o PT executa essa substituição: em lugar do exercício universal da justiça, tem-se a justiça para os que se “mobilizam”, para os “militantes” de causas, para os que encontram o seu lugar na estatal que mais cresce: a Reclamobras, formada pelos que reclamam a reparação de direitos supostamente agravados. Como apontei aqui há dias, estamos prestes a ter 60% das vagas do ensino federal médio e universitário comprometidas com cotas.

Essa é a face propagandística do, vá lá, novo regime. A outra face, a mais vetusta, aquela ignorada pelas “massas” (como eles gostavam de dizer antigamente), é a do aparelhamento do estado pelo partido — do estado e de todos os entes a ele associados, notadamente as estatais e os fundos de pensão, estendendo-se a instâncias diretamente ligadas ao exercício da justiça e às garantias dos direitos, como o Judiciário e o Ministério Público. O partido vai, assim, constituindo-se, com efeito, numa espécie de ente de razão, tornando-se, como queria Gramsci, o novo “imperativo categórico”. E a ubiqüidade não estaria devidamente caracterizada se não se lembrasse aqui o papel da imprensa, também ela, freqüentemente, comprometida com os valores influentes do petismo — na sua versão marrom, temos os mascates assalariados do oficialismo. Mas esses são manjados e só mobilizam os já mobilizados. Sua delinqüência é tal, que vivem da reiteração, não da conquista de novos fiéis. Mais preocupantes são os contínuos involuntários do partido, que não conseguem nem mesmo pensar uma maldita pauta fora de sua ditadura moral.

A verdadeira agenda do PT é o controle político da sociedade. O partido sempre pôde conviver com a economia de mercado — ainda que à sua maneira (já chego lá). Mas nunca pôde conviver, de fato, com a democracia plena e com a sociedade livre, daí a sua relação permanentemente crispada com a imprensa realmente livre e o tratamento sempre hostil dispensado àqueles que não lhe fazem todas as vontades. Daí a permanente criminalização da divergência, de que o Apedeuta-chefe é o grande teórico. A cada vez que subiu e sobe no palanque, dedica-se à demonização do passado, como se aqueles que o antecederam no cargo — menos Sarney, é claro — tivessem optado pelo erro, pela farsa, pela falcatrua.

Vejam lá o Lula que fala no Maranhão: se ele próprio ignorou a pauta petista, por que seus antecessores deveriam tê-la seguido? Mas Lula também se fez imune à lógica e à coerência. Ou não seria Lula.

Caminhando para conclusão, observo que relativizei ao menos duas vezes a compreensão que o PT tem da economia de mercado. Explico-me. O governo que aí está é mais um jogador do que um árbitro da aplicação das regras do jogo. E qualquer grande empresário sabe disso. Não se faz hoje um grande negócio no país sem que se sinta, como chamarei?, a presença forte do partido, decidindo, se preciso, ganhadores e perdedores segundo o interesse da nova classe que chegou ao poder. O emblema desse momento foi a lei que Lula assinou para legalizar a compra da Brasil Telecom pela Oi — num caso clássico, já aqui sintetizado, de lei feita de acordo com os negócios em vez de negócios feitos de acordo com a lei.

Muitos poderiam dizer: “Eis aí: mais uma vez, Lula, conforme confessou, atropelou o partido”. Bobagem! Lula agiu de acordo com o núcleo duro do PT, que sempre teve uma agenda aberta em economia. A agenda fechada, aquela de que não abre mão, é a do controle político da sociedade, é aquela que prevê substituir essa sociedade pelo partido. Na sua realização plena, será preciso pertencer ao partido para poder opor-se a ele.

Não sou pessimista. Sou realista. E, por isso, há tempos, declaro-me numa espécie de Resistência.

Link original no Blog de Veja - Reinaldo Azevedo

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