No discurso da última terça-feira, Sarney referiu-se, a alturas tantas, aos parentes admitidos ou exonerados do Senado por meio de atos secretos. Mencionou a sobrinha de sua mulher e um neto. Há outros. Mas ele se ateve a esses dois.
Indagou: "E, por isso, querem me julgar perante a opinião pública deste país? É, de certo modo, a gente ter uma falta de respeito pelos homens públicos [...] Extrema injustiça!"
Em tempo de São João, brincar com querosene à beira da fogueira não é coisa que o bom senso recomende. Mas já que partiu de Sarney a iniciativa de açular o fogo, não será o repórter que vai levar a mão ao extintor.
Afora a discussão sobre a natureza sigilosa dos atos, há densas suspeitas de que os parentes de Sarney mordiam a Viúva sem o dissabor do derramamento de suor.
Presume-se que Sarney tenha desejado dizer algo assim: ainda que seja verdadeira a acusação, ainda que o nepotismo tenha sido fulminado pelo STF, é uma honra para mim, que, ao malversar, malverso pouco.
Fosse Adão o presidente do Senado, decerto ainda estaríamos no Éden, eis a tese escondida atrás do argumento de Sarney. Que crime, afinal, cometeu o primeiro homem? Roubou uma maçã. Uma reles e inocente maçã.
A tentativa de defesa de Sarney ganha ossatura antropológica quando vista sob a ótica de um clássico: o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Recorre-se a Vieira porque se trata de autor admirado por Sarney.
Deus pôs Adão no paraíso, anotou Vieira, com poder sobre todos os viventes, como senhor absoluto de todas as coisas criadas. Exceção feita a uma árvore. Súbito, com a cumplicidade da protomulher, Adão provou do único fruto que não lhe pertencia.
"E quem foi que pagou o furto?", pergunta Vieira. Ninguém menos que Deus, materializado na pele de Jesus. Condenado à cruz, pregado entre ladrões, ofereceu um exemplo aos príncipes. Um sinal de que são, também eles, responsáveis pelo roubo praticado por seus discípulos.
Ao sobrepor a imagem do pequeno delito à do grande roubo, Sarney como que evocou outro trecho do "Sermão do Bom Ladrão".
Conta Vieira que, navegando em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os pescadores. Alexandre repreendeu-o.
Destemido, o pirata replicou: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?".
Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, Vieira lapida o raciocínio: se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos -rei, ladrão e pirata- merecem o mesmo nome.
Assim, o parente contrabandeado na folha, o suborno recebido de prestadores de serviço e a pilhagem milionária dos empréstimos consignados do Senado são irrupções de um mesmo fenômeno.
O tamanho do furto importa pouco. De troco em troco também se chega ao milhão. E quem se desonra no pouco mais facilmente o fará no muito, já dizia o Cristo.
A bordo de uma armada cujo comando divide com Renan Calheiros, o velho morubixaba do PMDB recorre a um contorcionismo vocabular perigoso.
Volte-se, por oportuno, a Vieira. Diz o sábio padre que são companheiros dos ladrões os que os dissimulam; são companheiros dos ladrões os que os consentem...
...São companheiros dos ladrões os que lhes dão postos e poderes; são companheiros dos ladrões os que os defendem; são companheiros dos ladrões os que hão de acompanhá-los ao inferno.
Sarney cava a própria sorte. Pode acabar inspirando a criação de uma inusitada escala ética. A escala São Dimas, em homenagem ao bom ladrão do Evangelho. Quem investisse com parcimônia contra a Bolsa da Viúva -de sobrinha a neto- estaria instantaneamente livre da sanha persecutória. Antes do arremate, ouça-se mais um pouco do Sarney de terça-feira: "Eu não sei o que é ato secreto. Aqui, ninguém sabe o que é ato secreto..."
"...O que pode ter [...] são irregularidades da entrada em rede ou não entrada em rede de determinados atos da administração do Senado..."
"...Mas isso tudo relativo ao passado; nada em relação ao nosso período. Nós não temos nada que ver com isso". Nesse ponto, é como se Sarney, do alto de seus 79 anos, 55 dos quais decicados à política, rogasse à platéia: Quero que me tomem por bobo, não por malfeitor.
Nesse ponto, é como se Sarney, do alto de seus 79 anos, 55 dos quais decicados à política, rogasse à platéia: Quero que me tomem por bobo, não por malfeitor.
O Sarney do discurso de ocasião, pronunciado num instante em que a suspeição toca-lhe os sapatos, não é o político experimentado que todos supunham.
Elegera-se três vezes presidente do Senado como um articulador de mostruário, exemplo de sagacidade e competência.
Descobre-se agora que, em 1995, em sua primeira presidência, Sarney nomeara Agaciel Maia para gerir o Senado à sua revelia. Dito de outo modo: Sarney alçara Agaciel à direção-geral para fazê-lo de trouxa.
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2 comentários:
Governador, algum "engraçadinho", criou um perfil se fazendo se passar pelo senhor no ORKUT. Acho que o senhor deveria tomar alguma atitude, afinal de contas não se pode saber a intenção de uma pessoa dessa. Segue o link com o endereço do falso perfil: http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?uid=1062513559293710830
Grande Abraço!
À exemplo de bandido que é condenado e não tem desculpa, alega que não estava em sua saúde mental perfeita, para que tenham pena e no mínimo seja sujeito à uma medida de segurança.
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