quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Gilmar Mendes defende varas especiais para julgar abuso de autoridade

O Estado: O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, defendeu ontem a criação de varas especializadas da Justiça para combater abusos de autoridade em investigações policiais. A proposta foi lançada durante o debate O Brasil e o Estado de Direito, promovido pelo Estado, que reuniu ainda o ministro da Justiça, Tarso Genro, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto.

Durante quase duas horas, os quatro debatedores analisaram a crise institucional gerada pela Operação Satiagraha, da Polícia Federal, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas, do grupo Opportunity. Em julho, Mendes foi alvo de protesto de juízes, promotores e delegados por ter ordenado a soltura de Dantas em duas ocasiões. A operação também revelou divisões na própria PF: o delegado responsável, Protógenes Queiroz, denunciou ter sofrido boicote por parte de seus superiores, a quem sonegou informações por temer que elas chegassem aos alvos da investigação.

No debate, Gilmar Mendes enfatizou que é preciso conciliar o combate à corrupção com o respeito aos direitos dos indivíduos. "O criminoso também tem direitos fundamentais", lembrou. Crítico das ações da PF mesmo antes da prisão de Dantas, Mendes voltou a atacar o uso de algemas no transporte de suspeitos. "A prisão, em muitos casos, só se justifica para fazer a imagem e a imagem com algema. Prender é algemar e expor no Jornal Nacional."

Tarso Genro defendeu a Polícia Federal, mas também sugeriu mudanças na legislação para evitar que o uso de algemas sirva para "expor qualquer pessoa, seja de que nível social ela for". "Há um apenamento antecipado pela exposição pública na mídia. Isso é uma atitude arbitrária do Estado que tem de ser vencida."

Antonio Fernando de Souza concordou com a necessidade de agir para evitar abusos, mas lembrou que é preciso haver "equilíbrio" entre o direito dos acusados e o direito de o Estado investigar. "Não se pode, a pretexto de garantir os direitos fundamentais, impedir que regularmente, pelo mesmo processo criminal, o Ministério Público possa fazer prova e comprovar a legitimidade das ações."

Cezar Britto, ao defender o projeto que restringe buscas e apreensões em escritórios de advocacia, destacou que é preciso combater a "lógica policialesca de que a defesa atrapalha" o combate ao crime. Para o presidente da OAB, o projeto - que aguarda sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - não "blinda" advogados, mas evita que o Estado os espione e comprometa as estratégias de defesa dos acusados.

Como forma de fortalecer o Estado de Direito e evitar abusos contra os indivíduos, os debatedores destacaram a necessidade de mudar leis e estabelecer novos parâmetros de conduta para os agentes públicos. Todos concordaram com a possibilidade de criar uma comissão de alto nível para rediscutir procedimentos nas investigações policiais.

O debate, transmitido ao vivo pela TV Estadão, foi mediado pelo jornalista Roberto Godoy e teve participação do repórter Fausto Macedo. A seguir, os principais trechos da discussão:

CONTROLE DAS AÇÕES POLICIAIS

GILMAR MENDES: "Precisamos ter um controle das ações policiais. Discutamos a criação de varas e corregedorias de polícia no âmbito federal, por que não? Precisamos estar abertos a essa discussão, exatamente para evitar os abusos. Podemos discutir isso no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). (...) É fundamental que nós discutamos isso, uma nova Lei de Abuso de Autoridade, eventualmente varas especializadas para corregedoria da polícia e para contestar os abusos."

O COMBATE À CORRUPÇÃO

MENDES: "Combate à criminalidade, sim, mas com respeito aos direitos fundamentais. Quem eventualmente defende a observância dos direitos fundamentais não está assumindo a defesa da corrupção. (...) Todos queremos a eficiência no combate à criminalidade, ninguém quer celebrar um pacto quanto à impunidade, mas não nos é dado fazer escolhas em relação aos princípios básicos do Estado de Direito."

A POLÍCIA E AS NOVAS TECNOLOGIAS

TARSO GENRO: "Os meios tecnológicos disponíveis para investigações da Polícia Federal evoluíram profundamente nos últimos 10, 15 anos. Isso implicou uma transformação da metodologia da investigação, que às vezes proporciona determinados excessos. Nós já remetemos ao Congresso um projeto de lei que proíbe, por exemplo, a gravação de conversa entre cliente e advogado. (...) Quando esses meios (tecnológicos) ainda não eram disponíveis, o inquérito policial ordinariamente começava com o interrogatório do suspeito, que se dava às vezes por meios não ortodoxos, não constitucionais. As pessoas sofriam violência, às vezes violência física, e aquele depoimento orientava o inquérito, que às vezes chegava cheio de vícios ao Judiciário. Com as transformações tecnológicas que ocorreram, foram oferecidos meios mais científicos de investigação. Temos de ver a fase pela qual estamos passando como virtuosa. (...) Uma coisa é a persecução criminal, é buscar a verdade quando se investiga um delito. Outra é utilizar esses meios tecnológicos para uma gestão manipulatória do Estado ou para a produção de persecuções políticas".

MENDES: "Diante dos avanços tecnológicos, já não se pode nem cumprir a lei estabelecida, porque não se consegue transcrever a quantidade de horas gravadas".

INVESTIGAÇÃO SEM GRAMPOS ANTONIO FERNANDO DE SOUZA: "Existem inúmeras investigações em curso em todo o Brasil - a maioria delas sem nenhuma utilização desses procedimentos de escuta telefônica. Mas não vêm ao conhecimento público. O Ministério Público tem trabalhado firmemente para impedir esses desvios (em operações da Polícia Federal), que devem ser punidos. E essa punição só virá, com absoluta certeza, a operacionalização do trabalho do Ministério Público só será definitiva, quando tivermos mecanismos mais efetivos de controle dos atos que são feitos."

VAZAMENTOS DE DADOS SIGILOSOS

MENDES: "A questão do vazamento, em dropes, parcelado, de informações é muito grave. Às vezes com intuito de prejudicar a imagem das pessoas de forma indelével. Não é possível que o Estado, valendo-se de um poder excepcional, faça isto. Não é razoável. É fundamental que se coíba esse tipo de prática. E a mídia aqui tem responsabilidade. É fundamental que discutamos isso com toda a abertura. (...) O vazamento hoje não é mais a exceção, é a regra."

SOUZA: "Neste momento há também um interesse da mídia em divulgar. O Ministério Público tem feito um esforço muito grande, mas reconhece ainda dificuldades, principalmente nessa questão de vazamentos, de identificar a autoria. Eu acho que devemos trabalhar o critério de se dar mais segurança nesses procedimentos, para garantir exatamente o conhecimento das pessoas que manusearam informação, a partir de que momento e de onde ela partiu."

PACTO COM A IMPRENSA

TARSO: "Temos de verificar, regrar, algum tipo de precaução contra a divulgação de informações infamantes e caluniosas. Sem ferir a liberdade de imprensa. Isso tem de passar, inclusive, por um pacto com a própria imprensa, porque às vezes o que se vê, além do vazamento - que já é uma ilegalidade -, é o uso calunioso do vazamento."

BLINDAGEM DE ADVOGADOS

CEZAR BRITTO: "Não podemos aceitar a lógica de que a defesa atrapalha, de que, se a defesa atrapalha, devemos acabar com o direito de defesa no Brasil. Esse é um debate atual , porque temos um projeto à disposição do presidente Lula que trata exclusivamente de reconhecer que, no conflito Estado-cidadão, o cidadão não pode ser a vítima do Estado. A forma pela qual o cidadão fala para o Estado é através do seu advogado, da sua defesa. Alguns acusadores passaram a imagem de que iam transformar os escritórios em depósitos do crime, colocariam-se cadáveres em escritórios de advocacia. Ou não compreenderam o que é a democracia, o Estado Democrático de Direito, ou não leram o projeto. (...) Atividade criminosa não é inerente à advocacia. O crime não tem ligação com a advocacia. Não tem, nunca teve e nunca terá o apoio da Ordem. (...) A primeira mentira que foi contada e repetida - repete-se e as pessoas acreditam nela - é de que esse projeto blinda a advocacia. O que o projeto quis estabelecer, e o fez muito bem, foi separar o joio do trigo. Um erro não pode justificar o outro. Se algum advogado errou, compactuou com o crime, ele deixa de ser advogado e passa a ser criminoso comum, como qualquer outro, e tem a Polícia Federal o direito de entrar no escritório de advocacia e processar a ele e a seu cliente. O que não pode, não deve, senão não estaríamos no Estado Democrático de Direito, é interferir na defesa, escutar a defesa, bisbilhotar a defesa, espionar a defesa."

CONTROLE IDEOLÓGICO E ESTADO DO MEDO

MENDES: "Quando se discutem questões sobre a liberdade do juiz (de primeira instância), devemos levar em conta este fenômeno: o controle ideológico e muitas vezes psicológico que se exerce contra essas pessoas. (...) Não há na história do mundo, na história universal, qualquer exemplo de país que tenha preservado a democracia tendo transformado a polícia em poder. Onde a polícia se transformou em poder, a democracia feneceu. (...) Há casos de denúncia que beiram a aventura. O processo Anaconda (sobre venda de sentenças judiciais) denunciou juiz por ter conta no Afeganistão."

BRITTO: "O que estamos propondo é revogarmos no Brasil esse Estado de medo que atinge todos. E não atinge só a advocacia, atinge a todos nós. Ninguém quer decidir mais nada, ninguém quer fazer mais nada, com medo da responsabilização, com medo de ser apontado no outro dia como criminoso em potencial. Ficamos raciocinando pela lógica do medo e o medo raciocinado sempre fazendo com que o Estado seja a razão de todas as coisas e o cidadão, um criminoso em potencial em todas as coisas. (...) O Estado tudo pode, pode controlar o cidadão? (..) Não tenho dúvida, ministro Gilmar Mendes, de que não estamos em um Estado policial. O tema desta conferência é uma reflexão para que evitemos, enquanto é tempo, e cheguemos a essa discussão."

TARSO: "A Polícia Federal não é uma instituição soberana. Se assim o fosse, se colocaria acima dos demais Poderes de Estado e teríamos aqui no Brasil um Estado policial. Isso não existe. (...) Perdoe, Britto, perdoe, Gilmar Mendes. Mas não é verdade que estejamos num Estado de medo. Isso não é verdade. Até porque, se nós corrigirmos essas ações da PF, ações determinadas pelo Poder Judiciário, corrigirmos erros do Judiciário da primeira instância, segunda instância, corrigirmos erros do Ministério Público, não vamos acabar com as escutas telefônicas."

ALGEMAS PARA RICOS E POBRES

TARSO: "Quando nós discutimos a questão do uso das algemas num cidadão que foi preso pela Polícia Federal, eu me propus a seguinte questão: todas as pessoas têm de ser tratadas de maneira igual; a lei permite que o agente verifique a oportunidade ou não de custodiar aquela pessoa mediante algemas. Enquanto a lei não for modificada, isso está delegado ao agente. Agora, o que não podemos é expor qualquer pessoa, seja de que nível social ela for. Há um apenamento antecipado pela sua exposição pública na mídia. Isso é uma atitude arbitrária do Estado que tem de ser vencida."

MENDES: "Em relação às algemas, e aqui também eu ressalto a comunhão de pensamento com o ministro Tarso, que não se trata de privilegiar pobres ou ricos. Nós queremos direitos fundamentais para todos e não enfatizarmos um modelo de classes. Queremos direitos fundamentais para todos. A prisão em muitos casos só se justifica para fazer a imagem e a imagem com algema. Prender é algemar e expor no Jornal Nacional. Nós vamos discutir essa questão na quinta-feira já. (...) Existe em relação a todos (indignação sobre uso de algema, sejam pobres ou ricos). Em matéria de habeas corpus, o tribunal é extremamente aberto. Estávamos discutindo uma questão relevantíssima da progressão de regime a partir da provocação de um réu - ele próprio impetrou habeas corpus, de uma carta feita em presídio. Temos uma sociedade marcadamente desigual, logo o acesso à Justiça também é comprometido. Muitas vezes as pessoas não chegam ao Supremo Tribunal Federal porque não têm advogado."

INFORMAÇÃO X PRESERVAÇÃO DA IMAGEM

TARSO: "É difícil porque são dois valores. Um, o direito à informação e a busca da notícia, um dos aspectos mais relevantes da sociedade democrática. De outra parte, a preservação da integridade moral do indivíduo. Problemático também, porque hoje a política se transformou em um grande espetáculo, com a criação de muitos fatos midiáticos e pouco conteúdo - e isso não é uma decadência da democracia, é uma nova etapa sobre a qual nós devemos nos debruçar para localizá-la. Isso só poderia ser resolvido por uma normatização forte da lei de abuso de autoridade e, concomitante, um grande pacto político, uma concertação política do Estado com a imprensa, que exerce uma função pública relevante. A imprensa hoje não é mais como a Segunda Guerra Mundial, que tentava interferir no comportamento."

DIREITO DE DEFESA X DIREITO DE INVESTIGAR

SOUZA: "O Ministério Público defende a ampla defesa dos acusados, mas também defende a sua possibilidade - e pelos mesmos recursos que a lei garante - de fazer prova. Tem de haver um equilíbrio também. Não se pode, a pretexto de garantir os direitos fundamentais, impedir que, regularmente, pelo mesmo processo criminal, o Ministério Público possa fazer prova e comprovar a legitimidade das ações. Estamos tratando de algo que pede o equilíbrio de todos."

ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

SOUZA: "O Ministério Público, embora seja organicamente estatal, está funcionalmente mais vinculado à sociedade. Essa conformação é reflexo da inter-relação entre esfera pública e privada. A instituição se move exclusivamente pelo princípio da legalidade, não da legalidade burocrática, mas daquela que possui o atributo da constitucionalidade. Não se trata de invadir competências alheias, nem de construir seu conceito próprio de legalidade. O Ministério Público não é político."

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