quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Outono do Oligarca

Sarney é, de muitos modos distintos, mas formidavelmente combinados, um espetáculo triste de se ver, patético mesmo, no sentido original da palavra, que foi se perdendo com tempo. Transcrevo para vocês a boa definição do Houaiss: “que ou o que tem capacidade de provocar comoção emocional, produzindo um sentimento de piedade, compassiva ou sobranceira, tristeza, terror ou tragédia”. Sim, essas coisas todas se misturam em mim vendo, hoje, sua figura.

Aos 79 anos, tendo participado da transição do regime militar para a democracia, tendo já presidido o Senado, poderia ser um desses senhores que se candidatam a oráculo e reserva moral. Ah, claro: seu governo teve lá as suas trapalhadas. Mas, se ninguém lhe dá uma colher de chá, este implacável Reinaldo Azevedo — tachado de malcriado às vezes; de destemperado, quem sabe?; de coisa ainda pior certamente — reconhece-lhe o mérito: ajudou, à sua maneira, um tanto torta, a consolidar a democracia no Brasil. Não foi um príncipe, mas também não foi um ogro. Não deveu nada à pastosa mediocridade de algumas reputações que estão por aí. Já que decidiu criar um estado pelo qual pudesse se candidatar, poderia, ao menos, ter escolhido a posição de conselheiro.

Mas não. Sim, sei bem, ele é quem é: pertence ao neocoronelato brasileiro — a esta altura, já tornado velho também. A idade e a posição alcançada no establishment lhe facultavam a possibilidade de ser, vejam que coisa, uma espécie de modernizador do conservadorismo, da tradição, escoimando dela as velharias e buscando um diálogo com o novo. Em vez disso, viu-se o quê? A emergência do poder petista, com sua propensão para dar liderança nova aos velhos vícios e acrescentar vícios inéditos ao estoque antigo, viu em Sarney um bom esteio.

Os magos do petismo apostaram, não sem razão, que ele poderia ser a voz daquele Brasil profundo, velho mesmo, arcaico, aferrado ao mandonismo, desta feita, mandonismo da periferia do poder, dos arrabaldes —, mas ainda com ampla representação no Congresso. E resolveram usá-lo como pilar da nova ordem. E ele aceitou ser esse pilar. Em torno dele, agregou-se o que há de mais arcaico na política brasileira, mas agora abrigado no guarda-chuva do “progresso” petista. Sarney e seus aprendizes, como Renan Calheiros, foram se transformando na cara do Congresso: defesa de privilégios inaceitáveis, desmandos, descuido com o dinheiro público. Enquanto isso, Lula, o demiurgo, o Tirano de Siracusa dos delírios de Marilena Chaui, triunfa sobre toda coisa viva, diante de um Congresso desmoralizado.

O gigantesco poder conferido a Sarney na era Lula não é apenas o preço a pagar pela governabilidade, que requer a aliança com o PMDB etc e tal. Esse argumento é velho. Sarney é a face não edulcorada do statu quo com o qual o petismo se acertou, no qual se deu bem. Não estivesse a academia brasileira (com exceções, sei disso) contaminada pela vigarice submarxista, que produz mais ideologia do que saber, essa era Lula estaria sendo examinada a partir de seus atores. E talvez se chegasse com facilidade à constatação de que vários atrasos se misturam: corporativismo, estatismo assistencialista, patrimonialismo renitente e, curiosamente, mercadismo (que não é economia de mercado; ao contrário: não gosta muito disso, não…).

Vi há dias Sarney na televisão. Não faz tempo, sua aparência, que não dispensava, como de hábito nos políticos, os recursos da cosmética, remetiam a alguém mais jovem, a uma liderança mais hígida. Exposto a si mesmo, a figura estava alquebrada, cansada, acuada pela incongruência entre palavra e realidade. Em suma, Sarney parecia mais velho do que Sarney, a despeito da cosmética: o que antes disfarçava começou a ressaltar, como, e não vai aqui nenhuma intenção agressiva, um clown surpreendido num momento de tristeza, com a lágrima a lhe deixar um rastro no rosto — símbolo, para mim, das coisas patéticas, conforme o definido no primeiro parágrafo. No discurso de hoje, vimos, finalmente, o Sarney de cabelos brancos, como a cobrar respeito.

Não é, definitivamente, algo bonito de se ver. Seria menos pior se, mero procurador daquele Brasil arcaico, pudesse se colocar agora como reformador dos maus hábitos, puxando a orelha dos seus liderados. Mas não! Infelizmente para ele — e para o país —, também é beneficiário desse Brasil que se faz nas sombras e que serve, reitero, como pilar disso que o PT pretende que seja uma nova ordem. E que é das mais antigas.

Há dias, recomendei aqui que renunciasse à presidência do Senado para que o processo político tivesse tempo de preservar o que ele pode ter representado de virtuoso, o que serviria, então, às exéquias decorosas de um tempo. Mas ele insiste em não sair de cena, em dar seqüência a seu número patético, em ser a expressão, com a maquiagem já derretendo, de um país que não passa e que precisa passar.

Talvez ele, escritor ruim, mas ao menos leitor — coisa cada vez mais rara na política, né, Lula? —, entenda que este é um texto, nas sua sinuosidades e reentrâncias, que serve à sua defesa. E a melhor maneira que tem o senador de se preservar em seu outono é não defender o indefensável. E sair de cena. Para que se tente fazer a higiene necessária na Casa.

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