Quando uma democracia é ainda jovem e "dada a experimentos", como observou polidamente o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, ao comentar os problemas políticos e jurídicos criados pelo vaivém das normas que (des)governam o sistema no Brasil, todo cuidado deveria ser pouco para impedir que as mudanças atropelem o que ele denomina "o ordenamento muito claro das regras e das atitudes". À falta disso, ou melhor, ao prevalecer o oposto disso, pela combinação de oportunismo e insensibilidade com que o Congresso adapta aos seus interesses o marco regulatório da ordem democrática, ela se torna enfermiça - e, como tal, submetida à lei do mais forte entre os participantes do jogo do poder. A relação entre representantes e representados desanda à medida que se infunde perversamente nas instituições que a encarnam o princípio da incerteza próprio das disputas eleitorais. Nas democracias, incerto deve ser o desfecho desses embates, não o efeito da manifestação das urnas.
Alheios a essa verdade elementar, os políticos se preparam para dar vigência imediata à proposta de emenda constitucional que cria cerca de 7.700 novas vagas de vereador em todo o País. Já não bastasse o absurdo - um trem da alegria percorrendo o território nacional -, o projeto em tramitação na Câmara dos Deputados trará a aberração de recompor as Câmaras Municipais eleitas em 2008. Isso porque elas não serão meramente engordadas com a efetivação de um certo número de suplentes. Os cálculos a partir dos quais as cadeiras em cada Casa foram distribuídas entre os partidos, conforme o sistema proporcional adotado no Brasil, terão de ser refeitos, o que significa que vereadores no exercício legítimo de seus mandatos poderão ser cassados, a fim de dar lugar a outros que tinham ficado no banco dos reservas. "Isso mexe em todo o processo eleitoral e também nos efeitos dos atos daqueles vereadores", argumenta o ministro Gilmar Mendes. Ele considera "extremamente difícil" que a emenda entre em vigor tão logo seja promulgada.
Mendes acredita que a aplicação da nova regra será contestada no Supremo Tribunal e que há "grande possibilidade de esta contestação vir a ser acolhida", o que remeterá o início da vigência da emenda para depois das eleições municipais de 2012. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, raciocina na mesma linha. "Uma emenda não substitui a voz das urnas para eleger quem não foi eleito", diz. Esse, de toda maneira, não é o único caso de instabilidade das normas democráticas. Nem o Congresso é o único promotor da desordem. A própria Justiça Eleitoral fez a sua parte ao decidir em dois casos de cassação de governadores por crimes eleitorais - na Paraíba e no Maranhão - que eles deveriam ser substituídos pelos segundos colocados nos respectivos pleitos. A decisão causou espécie sobretudo no Maranhão, onde a nova governadora, Roseana Sarney, também é acusada de delitos como os que o TSE entendeu terem sido praticados por seu adversário Jackson Lago.
Mas a questão não se limita à sucessão dos titulares destituídos - realizar novas eleições é decerto a melhor alternativa. O espantoso é que, dos 27 governadores vitoriosos em 2006, foram abertos processos por corrupção eleitoral contra nada menos de 8. (Três foram cassados e 2, absolvidos. As ações contra os 3 restantes foram suspensas pelo ministro Eros Grau, do STF, em liminar que beneficiou igualmente mais de 70 senadores e deputados federais.) O problema estrutural é evidente. A tendência para a transgressão nas campanhas políticas supera amplamente a capacidade dos tribunais eleitorais e do Ministério Público de reprimir o abuso a tempo e a hora. "As medidas teriam de ser preventivas. No curso da campanha, no ato das infrações e, no máximo, no período entre a eleição e a posse", assinala Gilmar Mendes. "O que não é razoável é cassar vários governadores, dizer que quem perdeu a eleição ganhou o cargo, e considerar que isso está adequado à democracia." Além da aceleração do rito - algo que vem se tentando há mais de uma década -, a conduta ilícita não pode ser ou ignorada ou punida com a cassação do mandato. Quando a escolha é apenas entre o tudo e o nada, em geral ganha o nada.
EDITORIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Alheios a essa verdade elementar, os políticos se preparam para dar vigência imediata à proposta de emenda constitucional que cria cerca de 7.700 novas vagas de vereador em todo o País. Já não bastasse o absurdo - um trem da alegria percorrendo o território nacional -, o projeto em tramitação na Câmara dos Deputados trará a aberração de recompor as Câmaras Municipais eleitas em 2008. Isso porque elas não serão meramente engordadas com a efetivação de um certo número de suplentes. Os cálculos a partir dos quais as cadeiras em cada Casa foram distribuídas entre os partidos, conforme o sistema proporcional adotado no Brasil, terão de ser refeitos, o que significa que vereadores no exercício legítimo de seus mandatos poderão ser cassados, a fim de dar lugar a outros que tinham ficado no banco dos reservas. "Isso mexe em todo o processo eleitoral e também nos efeitos dos atos daqueles vereadores", argumenta o ministro Gilmar Mendes. Ele considera "extremamente difícil" que a emenda entre em vigor tão logo seja promulgada.
Mendes acredita que a aplicação da nova regra será contestada no Supremo Tribunal e que há "grande possibilidade de esta contestação vir a ser acolhida", o que remeterá o início da vigência da emenda para depois das eleições municipais de 2012. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, raciocina na mesma linha. "Uma emenda não substitui a voz das urnas para eleger quem não foi eleito", diz. Esse, de toda maneira, não é o único caso de instabilidade das normas democráticas. Nem o Congresso é o único promotor da desordem. A própria Justiça Eleitoral fez a sua parte ao decidir em dois casos de cassação de governadores por crimes eleitorais - na Paraíba e no Maranhão - que eles deveriam ser substituídos pelos segundos colocados nos respectivos pleitos. A decisão causou espécie sobretudo no Maranhão, onde a nova governadora, Roseana Sarney, também é acusada de delitos como os que o TSE entendeu terem sido praticados por seu adversário Jackson Lago.
Mas a questão não se limita à sucessão dos titulares destituídos - realizar novas eleições é decerto a melhor alternativa. O espantoso é que, dos 27 governadores vitoriosos em 2006, foram abertos processos por corrupção eleitoral contra nada menos de 8. (Três foram cassados e 2, absolvidos. As ações contra os 3 restantes foram suspensas pelo ministro Eros Grau, do STF, em liminar que beneficiou igualmente mais de 70 senadores e deputados federais.) O problema estrutural é evidente. A tendência para a transgressão nas campanhas políticas supera amplamente a capacidade dos tribunais eleitorais e do Ministério Público de reprimir o abuso a tempo e a hora. "As medidas teriam de ser preventivas. No curso da campanha, no ato das infrações e, no máximo, no período entre a eleição e a posse", assinala Gilmar Mendes. "O que não é razoável é cassar vários governadores, dizer que quem perdeu a eleição ganhou o cargo, e considerar que isso está adequado à democracia." Além da aceleração do rito - algo que vem se tentando há mais de uma década -, a conduta ilícita não pode ser ou ignorada ou punida com a cassação do mandato. Quando a escolha é apenas entre o tudo e o nada, em geral ganha o nada.
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