Há momentos em que instituições e biografias entram em rota de colisão. Como no caso do Senado e de seu presidente José Sarney. E as instituições não podem ser atropeladas por conveniências pessoais, mesmo compreensíveis e defensáveis. Não se trata de prejulgar, trata-se de romper o impasse e abrir espaço para que se faça o necessário: um amplo levantamento de fatos conhecidos a partir de denúncias consistentes de que funcionou, ou funciona, no quadro de funcionários da Casa, um ou vários esquemas delinquentes de desvio de dinheiro do contribuinte para bolsos privados, entre outros crimes. Se houve ou não conivência de parlamentares, veremos nas investigações. Confirmada a cumplicidade, missão para o conselho de ética avaliar e enviar o(s) processo(s) ao Supremo Tribunal. Simples assim.
Está evidente que a permanência do senador José Sarney à frente da Mesa impede que investigações sejam feitas. Manter-se prejudica o próprio senador, sem se defender por causa das limitações do cargo.
Sarney nomeou Agaciel Maia diretor-geral da Casa no primeiro mandato como presidente, em 1995. No posto, Maia, funcionário do Senado desde 1985 graças a um desses trens da alegria que costumam transitar pela Praça dos Três Poderes - viagem em que, por coincidência, teve a companhia de Roseana Sarney -, se investiu de poderes imperiais.
Com eles, entre outros delitos, inchou de maneira inaceitável a máquina burocrática do Senado - hoje com 10 mil funcionários para atender 81 parlamentares. Ao lado de João Carlos Zohbi, diretor de pessoal do Senado, exercitou, também como cúmplice de parlamentares, o nepotismo e o clientelismo, práticas nefastas entranhadas na vida política do país. Fez de tudo, até empréstimos por baixo do pano a senadores, como ao tucano Artur Virgílio, a fim, é certo, de mantê-los sob controle. Editou mais de 600 atos secretos - se respaldado pela Mesa, veremos -, deixando, enfim, com a ajuda dos "agaciboys", nomeados por ele para postos-chave, um rastro de destruição de princípios morais.
Ter nomeado Agaciel não pode justificar que se coloque o senador José Sarney como corresponsável pelas malfeitorias. Mas a presença de Sarney no comando da Casa serve de natural freio ao andamento das investigações, e ajuda a degradar ainda mais a imagem dele e do Senado. Por isso, o senador deve se afastar. Não é prejulgamento, é precaução ditada pela emergência de um quadro que não deve perdurar.
O Senado não pode naufragar na inércia do impasse criado pela sucessão de denúncias porque o Palácio não quer se arriscar a perder o frágil controle que mantém sobre a Casa. Não é hora - aliás, nunca deveria ser - do varejo político. A própria sustentação de Sarney se esfarela. Na terça-feira, o DEM, uma das bases históricas do senador, recuou. Pediu-lhe que se licenciasse, assim como fizeram o PSDB e o PDT. Na tarde de ontem, senadores do próprio PT apelaram a Sarney que se afastasse por 30 dias, mesmo que isso significasse entregar o comando provisório do Senado ao tucano Marconi Perillo. Depois, voltaram atrás. Sarney esperaria uma conversa com Lula, de volta da Líbia, com chegada prevista para ontem, antes de anunciar alguma decisão. O encontro poderia ocorrer ainda à noite.
As circunstâncias conduziram Sarney ao mesmo beco de única saída em que se meteram Antonio Carlos Magalhães, Jader Barbalho e Renan Calheiros, guardadas as diferenças entre cada um: para eles e o Senado a única alternativa foi afastamento do cargo. Inerte, a massa orgânica dessas crises tende a se deteriorar e apodrecer.
É inútil atacar a imprensa profissional, tentando-se enxergar nas reportagens sobre o Senado conspirações subterrâneas. Aliás, como também é interpretada a série de notícias desabonadoras sobre a Petrobras.Fatos têm sido publicados e precisam ser investigados. Apenas isso. No que se refere à estatal, por uma CPI já criada. Em vez de atacar a mídia, governistas deveriam se explicar perante a opinião pública.
Não importa se é por causa da luta pelo poder no Senado entre PT e PMDB que escabrosas histórias de desmandos administrativos passaram a ser relatadas a repórteres por grupos de funcionários da Casa, e com provas. Importa é esclarecer se os casos são verídicos, apurar responsabilidades e executar punições.
José Sarney foi um dos que, ao decodificar com sensibilidade política os horizontes pouco visíveis na primeira metade da década de 80, deram cabal contribuição ao projeto político de transição do regime militar para a democracia, sem rupturas violentas. Apoiou aquele regime, mas soube ajudar a construir a ponte sobre o vazio, e o destino colocou-lhe em mãos o comando do país na volta à liberdade. Trajeto sinuoso, percorrido com êxito.
Da mesma capacidade de interpretar os ventos da política ele precisou lançar mão nos últimos dias. Espera-se que tenha se convencido a afastar-se da presidência da Casa - em nome não apenas de uma biografia, mas também para proteger o Senado. Questões mais amplas se colocaram à frente do experiente político, como há quase 30 anos.
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